As Soluções de Deus
Cediço que a influência divina ocorre por diversas vias. Todas elas, frutos de um só moto: o seu amor absurdo por estas criaturinhas desajeitadas. É na tentativa de avaliar um átomo dessa incomensurável convergência, em contrapartida ao problema do sofrimento natural, que procuro expor algumas possibilidades.
Ao perquirir a realidade social em contraste com os Testamentos bíblicos, pelos olhos de um cristão que reconhece as dificuldades da fé racional, faço lembrar que sempre haverá mais espaço para crença pessoal do que para certezas matemáticas. Porém, isso não significa que o vasto campo de tudo aquilo que ainda desconhecemos, cartesianamente, seja desprezado como mera especulação metafísica, por um arrogante positivismo pós-industrial.
Sou explícito, também de antemão, ao registrar que esta é uma singela ponderação em resposta a um livro (de propalado apóstata norte-americano, ex-pastor evangélico e hodiernamente um agnóstico). De fato, concordo que a Bíblia não detém todas as razões a justificar o sofrimento terreno. Nesse viés, atrevo-me a enfatizar algo que há muito persiste em minha jornada de cristão-aprendiz: não há como um livro – ainda que inspirado pelo sopro divino – conter todas as nuances individuais. Toda receita coletiva pode ser, em algumas ocasiões, claudicante por suas próprias restrições de alcance. Cada alma é um microcosmo, um complexo pedacinho do infinito de seu Criador.
Moral, conduta, ética e devoção são bens construídos, inclusive em meio ao sofrimento conjunto, durante séculos de uma pioneira cultura monoteísta - em busca de um relacionamento diuturno com o Autor da vida. Até aí, não me parece existirem grandes celeumas dialéticos. A teologia começa a receber espinafradas, todavia, na diáspora das exegeses, amiúde quando tenta interpretar a bondade divina diante das agruras do mundo. Ou, em palavras mais acadêmicas, a busca por embasamento da teodiceia, a justiça de Deus.
Bom, preliminarmente, não almejo lançar um balde de água gelada nos ânimos dos céticos. A despeito da gravidade do assunto – o sofrimento na condição humana – e de sua quase legitimidade para contestar os preceitos bíblicos (máxime quando nos deparamos com aberrações infernais como o Holocausto, guerras mundiais, chacinas étnicas, violação de crianças, doenças atrozes sem cura, fome, secas, enchentes, etc., a fustigar centenas de milhões de almas sem uma justificativa plausível), tudo poderia acabar com um simples golpe de cutelo na verve filosófica de todo pensador : Deus é o nosso dono!
Por mais grosseira e antidemocrática que possa soar tal premissa, se formos francos ao encalço da identidade divina, infalivelmente descobriremos uma verdade incômoda e desconcertante (todavia, paradoxalmente instigante e libertadora): não temos mais direito de exigir coisa nenhuma do que os animais e as plantas, verbi gratia. Quisesse Deus ser um criador maldoso, que nos gerasse tão somente para se divertir distribuindo recompensas e castigos, ei, aqui entre nós, amigos, ainda assim nada poderíamos fazer além de confirmar sua autoridade! (Talvez isso seja uma axioma cruel, mas não menos verdadeiro que “o temor ao Senhor é o princípio da sabedoria”.)
Contudo, para alívio de uma imensa população de criaturas racionais, Deus não é iracundo ou indiferente ao cotidiano. Empírica e historicamente, Ele se revela magnânimo, tanto, que deu o que tem de mais precioso – a si mesmo, na pessoa do seu Filho que comunga eternamente com sua essência – para o resgate dos que se perdem. E por que se perdem? Justamente, devido àquela que pode ser Sua grande prova de amor atemporal pelo espírito humano: o livre-arbítrio. Palavra tão desdenhada, rechaçada com vigor pelos agnósticos e ateus, contudo, reconheço a minha completa incapacidade de tentar algum descortino, se não incluir esse elemento precípuo e imprescindível da teodiceia.
Pois ninguém é obrigado a amar e servir a Deus (isso não seria amor, uma vez que não haveria chance para escolha e altruísmo). O privilégio dessa servidão é uma concordância, ora madura e consciente, ora um semiatavismo ou instinto do Maior, de maneira a cedermos nossa liberdade - que, naturalmente, nos leva à anarquia e ao sofrimento, por absoluto despreparo de controle da coletividade. Em troca, podemos experimentar de uma confiança e da adoração ao poder universal. Parece-me ter sido esse o cerne da questão com a queda de Lúcifer e do casal no Éden.
Essa é a capitania abjeta, o ó do borogodó da rapaziada vanguardista, refratária a convicções de uma sujeição aos cuidados do Pai - inicialmente descrito de modo um tanto rudimentar e canhestro, todavia mais compreensível na ocasião, pela Antiguidade, na familiaridade de um soberano ciumento, amoroso mas também beligerante, onisciente mas concomitantemente que se arrepende, enfim, um oximoro antropomórfico hábil para instilar a transição da barbárie, nos termos do Antigo Testamento.
Esse livre-arbítrio, em uma concepção menos burilada, aparenta ser um bem incalculável e absoluto da humanidade. A tal ponto de essa desmesurada liberdade cometer novo deicídio, ora no campo moral, pela estapafúrdia abissal de acusar Deus por uma inércia ou não interferência para impedir o sofrimento das pessoas. Talvez aqui caibam duas observações refratárias.
A primeira delas aponta o mundo como uma estação onde o mal viceja, porquanto alicerçado justamente na autonomia secular. Aqui é o nosso quintal. Como “proprietários”, podemos seguir os conselhos do vizinho da esquerda, ou os da direita. Talvez isso também seja parte programática do intrincado plano reparatório divino, sobre a questão que envolve o pecado (transgressão, rebeldia, etc.). Algo do tipo: “viram o que acontece quando vocês decidem viver sem mim, fazendo o que não sabem (como cuidar dos seus próprios destinos)?” Como crianças que machucam umas às outras, até mesmo os inocentes tornam-se vítimas do egoísmo geral.
A segunda reflexão orbita na pretensão do fragmento sobre o todo. Traduzindo, isso equivale dizer que não pode uma formiga compreender adequadamente o mecanismo universal. Pois, por simples e ululantes lógica, a parte não é maior que o todo. Destarte, esses segundos que chamamos de vida não podem determinar a justiça - holística e transcendental - de Deus sobre atos “de terceiros”. Evidentemente, quem sofre tem todos os motivos possíveis para discordar, com veemência, dessa constatação. Aliás, seria uma sandice insondável apregoar, por exemplo, que um prisioneiro de um campo de concentração nazista não possa se sentir desolado, sentindo-se inclinado a duvidar de Deus.
Percebo que, em ocasiões de adversidades mais intensas, os clássicos questionamentos do grego Epicuro parecem assombrar a fé inclusive dos mais experimentados: Deus quer impedir o mal, mas não consegue? Então ele é impotente. Ele é capaz, mas não quer? Ele é malévolo. Deus é capaz e quer? Então por que o mal prospera no mundo?
Pode parecer simplista, mas decido confiar em quem é infinito. A despeito de minhas dúvidas existenciais, percebo sinais inequívocos de bondade, como digitais do Criador do universo. Seja como for, quanto mais eu estudo sobre os ensinamentos deixados por Deus na Terra, a escada que desceu dos céus chamada Jesus Cristo, mais corroboro a sensatez e a validade das narrativas bíblicas – conquanto possam aparentar ser insuficientes ou inclusive contraditórias, em uma leitura menos abrangente.
No mais das vezes, o fato de não avistarmos o apoio divino não deve servir de motivo para abandonarmos o seu maravilhoso convite para crermos além das aparências. Do contrário, negaremos a existência do oxigênio que respiramos?
“Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: Senhor, para quem iremos nós? Só tu tens as palavras da vida eterna.” (João 6:68)
“Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.” (João 16:33)
“O deus desta era cegou o entendimento dos descrentes, para que não vejam a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. (...) De todos os lados somos pressionados, mas não desanimados; ficamos perplexos, mas não desesperados; somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos. (...) Por isso não desanimamos. Embora exteriormente estejamos a desgastar-nos, interiormente estamos sendo renovados dia após dia, pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles. (...) Assim, fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno.” (2 Coríntios 4)
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