"NINGUÉM ESTÁ LIVRE DOS DEVANEIOS DE SUA ARTE,
OU DA CHINELADA DA LUCIDEZ ALHEIA." Cleberton O. Garmatz

"Estranhos dias os que vivemos, em que para se destacar em uma área, as pessoas se tornam imbecis nas demais." Cleberton
(Ai dos meus pares, que continuam medíocres em 100% delas...)
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terça-feira, 10 de março de 2009

Pequenas Mortes

Três Cidades

Fronteira. Manhã quente de dezembro, terra vermelha, talvez fosse sábado. Havíamos recolhido doações entre os funcionários da Febem local. Com a carona de um integrante do Conselho Tutelar, fui distribuir os mantimentos a um segmento da patuleia desvalida, situado às margens da rodovia de acesso à cidade.
Eu tinha preparado o espírito para encarar o mundão canino, ou pelo menos assim pensara. Como de praxe, a coisa é mais feia do que na tv. Casebres amontoados por entulhos e lixo que fedia. Não é cenografia. Crianças sujas, padecendo de piolhos e barriga d’água, velhos deixados debaixo das árvores, em um improvisado asilo a campo aberto. Adolescentes (ou crianças?) grávidas. Não são figurantes.
Choro de bebês, pessoas desdentadas, farândola adornada por chagas, ataduras, moscas, ratos. Disneylândia cabocla. Não paga nada para entrar (mas para sair, muito).
Decidi entregar os donativos naquela banda da cidade pela lembrança de uma reportagem, veiculada por um jornaleco da região, na qual se flagrou o que era um dia na “vida” de uma família miserável (oxímoro que aturde como tabefe inesperado). Uma mãe de 18 anos –aspecto de 30- e sua penca de desnutridos, numa barraca de lona preta, à beira da estrada. Estava preparando o manjar do almoço: sopa de papelão e grama (huuuummmm... já mandaram a receita ao programa da Ana Maria Brega?).
Tão logo estacionamos, foram avistadas as cestas do Papai Noel paraguaio. Criou-se uma pequena multidão somali ao nosso redor, e a despeito do bom número de doadores, a brincadeira acabou sem ter começado, em menos de cinco minutos. Formigueiro humano. Sol que fustigava. Uma senhora, de bengala, estendeu sua mão trêmula para receber algum pacote. Que não mais existia. Um menino, no alto dos seus cinco ou seis anos, puxava-me pela calça; pergunta: “E eu, tio? Eu também quero. Dá um pra mim e minha mãe, tio.” Uma mulher chegou com uma panela vazia e os olhos marejados. Minha garganta estava seca. O rosto e o corpo gotejavam. Mas a gandaia acabou, bugrada, voltem para as jaulas! Dom Quixote natalino teve de dar no pé, antes que virasse guisado da ceia.
Estômago embrulhado, nervos chapados. Volto ao local de trabalho, onde encontro os colegas falando alto, dando risadas, às voltas com um leitão ao forno, cheiroso, lauto em iguarias de acompanhamento. Sorvete, refrigerantes, frutas, petiscos. Sirva-se à vontade, bom cidadão. “Jet leg do carai!” Inferno e céu em poucos minutos. Não há Virgílio que me explique dantesca incoerência. Feliz Natal.


Capital gaúcha. Vinte e três horas, nas ruas congeladas do Centro que exalava urina. Salgado Filho com a Borges de Medeiros, o marcador eletrônico acusava dois graus. Não se sabe em qual sauna... A sensação térmica era de uma nevasca, de um vento polar que rasgava o ânimo de qualquer esquimó. Jesus, eu já estava nervoso, irritado com aquele frio implacável, aquilo não era ambiente civilizado; não aguentava mais andar naquela geladeira urbana. Conquanto vestia estratos grossos de lã, o ar era pesado, cortante, parecia queimar o rosto. Pernas cansadas, tudo era um suplício glacial. Começava a experimentar um pavor de ser petrificado ali mesmo. Foi quando levei o susto, tomado de espanto pelo surrealismo bandido. Cena comum, coisa despercebida pelo homem moderno (acostumado com a insanidade travestida de alguma lógica). Seis ou oito crianças, chinelos, inermes, sem cobertas, apenas jornais. Amontoadas para aquecerem-se entre si, tentando dormir na calçada escura. Ao lado da parada de ônibus, enquanto eu aguardava um tabefe para me recuperar do impacto.
Tal foi aquele frio, que ainda mora em mim.


Curiti-bah! Eu e a dona encrenca fomos jantar fora. Em grande estilo. Feirinha itinerante – às quintas, na Nossa Senhora da Luz – para apreciar cachorro-quente de barraquinha. Elite é outra coisa, fio... Como bom cavalheiro, deixo que a esposa saia do carro para buscar a nossa encomenda. E aguardo no outro lado das luzes e quiosques. Sentia-me extenuado, sem forças para um peido, quase dragado por um cansaço semanal, no estresse de uma metrópole. Começo a tergiversar, viajando na maionese estragada, coisas do gênero.
Quando percebo um vulto, pela visão periférica, nas sombras do estacionamento em frente da feira. Estava no chão, escorando suas costas na parede. Ignorando os perigos da selva, algo me leva até a figura incógnita. Sem muito traquejo, pergunto se ele era um guardador de carros. Negou. Pergunto o seu nome. Num fiapo cândido de voz, responde: João. Era um velhinho, daqueles meigos, de peça publicitária, que gostaríamos de ter na família. Poderia ser a personificação de um Santa Clauss. Não fossem as latas de lixo. A escuridão. O abandono silente. O anonimato das estatísticas.
A figura maltrapilha ficou ali, testemunhando o despreparo deste palerma. Doente, fraca. E muito mais cansada do que eu.

Um comentário:

  1. Então estamos assim. Quando eu desejo que o caboclo seja um bom cristão, de assalto sou execrado pelos plantonistas a valer o Estado laico, a redação oficial – politicamente escorreitíssima – e o panteísmo multicultural desta nação.
    No expediente de uma repartição, se o funcionário despede-se do consulente pelos votos de “Jesus te abençoe”, não tardará a expressão sisuda da estranheza, alguém a adivinhar o sectário de outra ramificação ideológica. Propostas pacifistas e altruístas, deturpadas pela rotulagem e pelo ranço corporativista.
    Por natureza, sou propenso a uma persuasão racional e empírica, convidativa pela dialética holística. Acredito no valor das convicções que permitem o burilamento das dúvidas aos seus visitantes, descontaminadas de proselitismos, portanto. Até ser desmascarado pelo reflexo basilar, constrangido à sombra do meu próprio núcleo dogmático: o axioma de Jesus Cristo, descrito no contexto bíblico. Dele não abro mão, logo, reconheço minha cota fundamentalista.

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