"NINGUÉM ESTÁ LIVRE DOS DEVANEIOS DE SUA ARTE,
OU DA CHINELADA DA LUCIDEZ ALHEIA." Cleberton O. Garmatz

"Estranhos dias os que vivemos, em que para se destacar em uma área, as pessoas se tornam imbecis nas demais." Cleberton
(Ai dos meus pares, que continuam medíocres em 100% delas...)
Também desenvolvo esta página eletrônica:
http://progfogosanto.blogspot.com.br
http://portalipr.wordpress.com

LIVRO 300 LEITORES

Adquira o meu lançamento 300 LEITORES, livro digital ("e-book") distribuído pela LIVRARIA SARAIVA, em http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4984268


Vídeo promocional:
http://youtu.be/euoavPMK-d8



domingo, 1 de março de 2009

ADMIRÁVEL

Admirável Mundo Néscio

Do universo de coisas das quais sou parvo de roldão, cito episódio corriqueiro nestas bandas.
Eis o morador do propalado “Resort Dubai”, digníssimo Senhor A. B. de C. e D., cioso burrocrata federal, esposo infiel da Senhora Fulana, pai de Júnior e do temporão Beltrano Filho. Em sua misantropia de elite, quando não goza de suas merecidas férias em terras estrangeiras, costuma iniciar os dias com o desjejum “cinematográfico” (consoante escrutínio da alcaguete do condomínio de luxo, casa 26) das oito horas. Conversa, graceja, faz blague ao simular pequeno atrito com o caçula desleixado na escola. Meia hora depois está no bem conceituado departamento, onde chefia a repartição de análise logística de apoio e assessoria para suporte administrativo, subseção de obras da Secretaria do Escambaus.
Quando da farra retorna, proclama-se o mais estropiado dos mortais, ameaça dar safanões se o guri não parar de estremecer o quarteirão, através do “funk proibidão” no seu quarto.
Dizem as línguas efusivas (da casa 26), subsidiadas pelo depoimento compromissado de uma das três empregadas domésticas do casal, que vez em quando o senhor A. traz um mimo para sua siliconada esposa, ladeado à porfia de ramalhetes silvestres. No início, suspeitou-se que o cidadão fosse proprietário de alguma floricultura. Ou que ele deveria aprontar pra caramba... Seja como for, o homem encontra sua residência organizada para recepcioná-lo, as geladeiras abarrotadas com suas iguarias diletas (e outras extravagâncias gastronômicas ainda não catalogadas), as contas devidamente afastadas de suas vistas, o roupeiro metódico em trajes notáveis, tudo sofisticado, elegante, “clean and cool”, padrão da diretoria.
Uma vizinha contou (a quem mais?) que a Senhora Fulana, quem diria, gostava de zelar pelo repouso do guerreiro, não lhe negando as provocativas “lingeries” importadas e as gotas de “eau” parisiense. Coisa picante, pelo crivo do posto avançado da casa 26.
Naturalmente, ocorrem alguns eventuais arranca-rabos. Certa feita, a mulher, exasperada, fuzilou: -“O quê? Fala, o que te falta, o que está errado? Está insatisfeito com o quê, senhor meu marido?” Ao que a artilharia rival prontamente rebateu: -“Ah é, quer saber mesmo? Pois saiba que eu me sinto pressionado, sem espaço para os meus projetos, isso tudo me sufoca, tu não sabes as responsabilidades que tenho. Os meus sonhos. Quero progredir, Fulana. Pro-gre-dir! Ou pensas que vou terminar os meus dias nesta mesmice?”
Blá-blá-blá.
Livremo-nos da intempérie conjugal, para maltratarmos a privacidade – vale o oxímoro – de um dos milhares de andarilhos, o sem-teto Zé, cujo paradeiro mais regular estava na laje irregular de um exíguo terreno baldio, adjacente à garagem da bagaça.
Conheci o esfuziante –ou seria apenas simpático?- mendigo por algumas conversas sazonais. Soube que o seu pai, João da Silva, foi um grande auxiliar de servente no ramo da construção civil. Chegou a fazer duas faculdades (não fez a terceira porque acabou o cimento). Faltou pouco para ser “que nem esses doutô engenhero”, nas suas reverências póstumas, inobstante certas ressalvas. “Eu era ainda piqueno. Ele tinha dia que chegava na cana, gambazão. Daí ele sentava a mão cumigo e a muié dele.”
Disse-me que não sabia quem foi sua genitora, como também desconhecia o endereço de sua parentela. “Ah, nessas hora num tem ninguém por nóis, né Seu.” Sabia apenas de seus três irmãos, todos já encaminhados na vida: “um tá no cemitério, outro tá na cadeia da Capital, e a mana é puta de zona rica, coisa fina, Seu.”
Quanto a si, não era um profissional talentoso, todavia não se considerava um inválido, apesar de alguns defeitos físicos. “Num sô vagabundo que eles me xingam.” Na tentativa de evitar maiores constrangimentos, acordava mais cedo do que a maioria, pois “(...) na rua num tem domingo nem feriado, né Seu.” Ainda assim, era enxotado.
Contou-me, dia desses, em um misto de desesperança e amargura, lamentação e fadiga, que seria menos penoso arranjar um ganha-pão caso não tivesse de sair perambulando em busca de algo sólido para engolir. Algo para reduzir a fraqueza, as dores de cabeça e do tísico estômago que latejava.
-“Mais ainda bem que num precisa muita cosa pra uma pança como esta, né Seu.”
Havia momentos em que parecia macambúzio, espectro errante de pele esquálida. Desdentado, esboçava aquilo que outrora seria o rascunho de um sorriso: “Eu num minto, Seu. Tem veiz que eu tomo umas pinga sim. É baratinha, custa pouco, e faz dormir e esquecer a judiaria. Me ajuda a enganá a fome, Seu.”
Em uma noite extremamente fria, cortesia do inverno fronteiriço gaúcho, pude auxiliá-lo com um velho cobertor. Conversamos coisas diversas. Despedi-me com uma pergunta tautológica, destinada a me acompanhar até a campa.
-“Zé, se fosse pra fazer um pedido qualquer, o que tu querias hoje?”
No que ele fitou-me, de inopino, com os globos vidrados e assustadores (convictos como Deus no meu juízo derradeiro), e respondeu baixinho, quase um sussurro:
-“Queria ser gente.”




Nunca mais o encontrei.




“Pudessem todos os homens se lembrar que são irmãos.” (Voltaire)

Nenhum comentário:

Postar um comentário